O “sarampo” português

A propósito de uma entrevista sobre o vírus do sarampo, resolvi efectuar um paralelismo com o momento económico do nosso País nos últimos anos e o nosso estado de espírito como cidadãos portugueses.

Por Nelson Ferreira Pires, director-geral da Jaba Recordati

Uma espéciede silepse intelectual para ver como nós, portugueses, somos um povo melancólico que se alimenta da imaginação e do sonho. Não quero com este artigo de opinião, desrespeitar ou minimizar o sofrimento dos doentes que sofrem com esta patologia que pode ser mortal. Muito pelo contrário, até fazer alguma formação para a saúde de uma forma disruptiva, respeitando aqueles que já sofreram ou sofrem com esta doença. Por outro lado, e de forma transparente, manifestar a minha falta total de conflito de interesse político e ideológico neste texto, apenas querendo manifestar, ou alertar, para aquilo que julgo nos está a acontecer a todos. Como bons portugueses que somos, estamos a viver o sonho do crescimento, provavelmente cedo demais!

No início de 2017, um estudo da Aximage mostrava que o grupo de portugueses que achava que a economia iria piorar no ano seguinte era substancialmente mais elevado que em Março de 2018. Pela primeira vez nesta legislatura, as perspectivas económicas sobre o curto prazo (39,4% acham quevai ser melhor e 46,4% igual) são melhores que o longo prazo.

No início de 2017, a diferença chegava aos 17 pontos, dando vantagem ao longo prazo (três anos), mostrando a insegurança em relação ao imediato, ao dia seguinte. Mudamos rapidamente de opinião, como se pode ver. Neste caso pela positiva! E os motivos e sinais que nos entram pela porta, são muitos: em 2017 e já no início de 2018, os juros da dívida portuguesa caíram para mínimos de 2015, as remessas dos emigrantes sobem 3%, o PIB cresce 2,7% essencialmente devido ao aumento da procura interna, o número de dormidas turísticas cresceu +8%, a taxa de desemprego ficou nos 8% em 2017, a saída da classificação de ‘lixo’ por duas das principais agências mundiais de notação de risco… Ou seja, sinais muito positivos na vida macroeconómica, que nos fazem acalentar o sonho de que a crise passou e que vamos viver melhor. E começamos a exigir: mais salários, mais subsídios, mais condições, menos impostos, mais acesso… Porque acreditamos – como cidadãos – nos números e nas análises macroeconómicas que não entendemos bem; ou acreditamos na maior parte dos economistas que falham redondamente nas suas previsões, mas que nos “mostram a luz ao fundo do túnel”.

E assim como a crise, também o sarampo tinha quase desaparecido dos indicadores de saúde. Infelizmente, até há poucos dias atrás… O que nos leva a repetir as mesmas questões, no nosso exercício de silepse intelectual, afinal o que aconteceu?

Supusemos que a vacinação do sarampo era um facto universal e que era eficaz a 100%. O que não é verdade, pois apenas é eficaz em cerca de 90% dos casos e existe uma faixa da população que não é vacinada. O mesmo está a acontecer na economia real, supomos que tudo está bem, as pessoas a viver melhor porque o PIB cresce 2,7%. No entanto os números mais recentes do EU-SILC dão conta que, em Portugal, 10,8% dos trabalhadores estão em risco de pobreza (a taxa para população em geral é 18,3%). E que segundo a Comissão Europeia, pasme-se, Portugal é um dos países onde o rendimento dos agregados familiares se mantém a níveis inferiores a 2008. Então se existe risco, a que sintomas se deve estar atento? No sarampo, à febre, conjuntivite, pingo no nariz, falta de força, erupção cutânea. Ou seja, os mesmos sintomas da gripe, podendo ser mascarados erroneamente. O mesmo pode acontecer ao nosso entusiasmo desenfreado com os indicadores macroeconómicos de redução do desemprego para cerca de 8% por exemplo, quando sabemos que a “taxa de desemprego redimensionada” (entre os “desencorajados” que desistiram de procurar, os indisponíveis para trabalhar, os trabalhadores em part-time à força e os “ocupados” do IEFP), ou seja o desemprego real fixava-se nos 17,5%, no final de 2017. Quando os “Inactivos desencorajados” aumentaram 82%, de 142,7 mil para 259,5 mil Portugueses. Ou, por outro lado, no sector privado os precários já representam cerca de um terço dos trabalhadores. Sinais preocupantes de sintomas microlaborais que se estão a tornar macrolaborais.

Mas, afinal, quais são os perigos reais do sarampo? Ou seja, a doença tem carácter de doença aguda mas pode complicar-se? Pode, se provocar pneumonia ou encefalite (lesão cerebral). Esses casos podem ser graves, até mortais. Sendo um vírus, não há muito tratamento para o sarampo.

A par do sarampo, a mesma “encefalia” agora económica pode acontecer – infelizmente e esperemos que não – com a nossa economia, chamada de dependente. Dependente de outras economias mais fortes, nomeadamente de medidas como a reversão da política monetária do BCE que, a ocorrer, colocará uma maior pressão nas taxas de juro da dívida pública; do risco de abrandamento da economia espanhola, dado ser o nosso mais importante parceiro de exportação; da real subida do preço do barril de petróleo Brent acima dos 70 dólares ocorrida já em 2018; da falta recorrente de financiamento das empresas portuguesas pela Banca; pelo abrandamento do emprego; pelo risco cíclico do turismo; pelo aumento da carga fiscal que se verifica em 2018 (peso no PIB de 25,2%), entre muitos outros factores que não controlamos, por sermos dependentes. Então como controlamos esta doença? Como se transmite o sarampo? O Sarampo transmite-se através do contacto de pessoa para pessoa. Por espirros, tosse, conversa.Controlamos através da vacinação.

O mesmo deve passar na economia e sociedade portuguesa, com medidas estruturais, que sejam transversais e não só conjunturais. Medidas de redução efectiva da despesa pública não efectiva, de estímulo à poupança; de políticas de estímulo ao investimento económico duradouro e de valor acrescentado; de flexibilização laboral que estimulem o emprego e não aumentem a precariedade; de reforma do sistema judicial; criação de um novo modelo educativo de forma a torná-lo mais eficiente e competitivo; de criação de clusters económicos de conhecimento onde possamos ser competitivos; do SNS com o cidadão no centro do sistema, entre outras. Medidas que nos podem permitir “vacinar” para que o impacto de novas epidemias não seja tão nefasto para a nossa vida!

Por último, deixo-vos com uma filosofia de vida – “Em tempos de crise muitos choram, mas alguns vendem lenços de papel”!

Este artigo foi publicado na edição de Abril de 2018 da revista Executive Digest.

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