Momento de viragem
Tornou-se popular dizer que a crise traz oportunidades. Sobretudo para quem ganha a vida a convencer os outros a gastar uns trocos num livro com a fórmula mágica para sobreviver nestes tempos difíceis. Mas já o ouvi de economistas ainda à procura da credibilidade, depois de não fazerem ideia de como o chão fugiu debaixo dos pés do seu conhecimento “científico”.
A maioria destes sábios baseia-se – e basicamente resume-se a repetir até à náusea com exemplos e palavras suas – na interpretação do ideograma chinês wei ji. Em benefício das três pessoas que nunca ouviram ou leram sobre o assunto aqui vai a explicação sucinta num parágrafo.
A palavra crise em chinês é escrita com a conjugação de dois ideogramas: wei, que significa perigo, e ji, que significa oportunidade. Assim, wei– a crise – seria uma conjugação afortunada de ji eventos perigosos, que nos podem destruir, e de eventos auspiciosos, oportunidades que uma vez aproveitadas nos levam a uma situação melhor. Daí à prescrição de “vejam o lado positivo da desgraça” é uma escorregadela.
Em primeiro lugar, importa qualificar a base da ideia. Alguns estudiosos de mandarim contestam que a tradução do conceito original para as línguas ocidentais seja assim tão simples. A conjugação de dois ideogramas para construir um terceiro faz com que o todo seja maior do que a soma das partes – uma outra verdade de algibeira que qualquer pessoa com meio cérebro sabe.
Segundo estes, a interpretação correcta de wei ji seria assim “momento de viragem”, um período de tempo em que algo que foi não voltará a ser, para melhor ou para pior – cá está o efeito do perigo e da oportunidade.
Mas mais importante do que a semântica é desmontar a validade da interpretação. Se esta ideia já é do senso comum porque é que não vemos uma horda de cidadãos a identificar e aproveitar as inúmeras oportunidades que uma crise tão grande como a presente traz? Porque não vemos um júbilo colectivo com a perspectiva da falência de empresas e mercados?
Em primeiro lugar porque a ideia é um embuste. Perguntem às famílias em que ambos os membros do casal acabaram de ficar desempregados que oportunidades têm pela frente, além da amarga oportunidade de aprender a viver com a humilhação de não poder sustentar condignamente os filhos. A verdade é que as poucas oportunidades que existam numa crise não estão acessíveis à maioria das pessoas. Identificá-las e aproveitá-las depende de competências e recursos que a maioria da população não tem. E mesmo quem os tem precisa de ter acesso à informação no momento exacto em que decisão e acção sejam eficazes. Ou seja, nada se faz sem uma ajuda da boa e velha sorte.
Em segundo lugar, ninguém que pare dois segundos para se ouvir pode defender que uma crise, em si e por si, traga mais oportunidades do que a prosperidade. O que se passa é que numa situação de crise estamos mais atentos às poucas oportunidades que aparecem e aproveitá-las torna-se um factor de vida ou de morte. Além disso, quem as aproveita torna-se, por contraste, mais visível no meio da desgraça. Temos razões mais do que suficientes para forçar que o momento de viragem seja no sentido positivo. Afinal, é das nossas vidas que se trata. Se isso exigir inventar oportunidades a partir dos cacos da situação anterior, vamos a isso, mas travestir a crise já me parece um exagero. E se quiserem citar alguém, ao menos variem e lembrem os Monty Python: “always look at the bright side of life.”
Por Ricardo Vargas