Nova lei do combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo

por Alexandra Mota Gomes – Associada e coordenadora da PLMJ Penal

Esta nova lei, que entrou em vigor a 17 de Setembro, alarga o leque das entidades obrigadas ao cumprimento dos deveres de combate e prevenção, passando a incluir os concessionários de exploração de salas de jogo do bingo, operadores que exerçam actividade leiloeira, de importação ou exportação de diamantes em bruto, de distribuição de fundos e de valores e os contabilistas certificados. Se no que diz respeito às entidades financeiras as alterações se prendem, sobretudo, com a necessidade de densificação e concretização dos respectivos deveres, fruto da elevada regulamentação sectorial a que já se encontravam sujeitas, já no tocante às demais entidades obrigadas, esta lei vem operar uma verdadeira revolução, passando a impor-lhes a adopção de toda uma série de deveres que, claramente, só as entidades financeiras estavam habituadas a executar, no âmbito do combate ao branqueamento e ao financiamento do terrorismo.
A nova lei vem assim exigir e, nalguns casos, reforçar a necessidade de colaboração entre as entidades privadas e as autoridades públicas, nomeadamente a Unidade de Informação Financeira (UIF) da Polícia Judiciária e o Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), no combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo. A crescente sofisticação dos processos de branqueamento, por um lado, e a simplicidade dos métodos adoptados nos mais recentes casos de terrorismo, por outro, justificam e reclamam a necessidade da aplicação destas medidas de modo transversal aos diversos sectores de risco – financeiro, imobiliário, serviços jurídicos, jogo, actividades desportivas, comércio, entre outros.

Medidas excessivas
Porém, nalguns casos, as medidas previstas são claramente excessivas, em função dos riscos de branqueamento e de financiamento do terrorismo subjacentes a determinadas actividades.
Exemplo paradigmático disso são os comerciantes, em que, da discricionariedade deixada ao legislador nacional na transposição da 4.ª Directiva, resultou um regime bastante mais exigente daquele que se encontrava previsto no Lei n.º 25/2008, de 5 de Junho.
Na nova lei deixou de se fazer qualquer referência ao valor dos pagamentos em numerário, a partir do qual os comerciantes estavam sujeitos à adopção das medidas preventivas e repressivas do branqueamento de capitais e do financiamento do terrorismo, tendo o legislador nacional ido bastante mais além do que se prevê na legislação europeia.
Com efeito, a 4.ª Directiva prevê a sujeição dos comerciantes às medidas de combate ao branqueamento e ao financiamento do terrorismo, apenas na medida em que sejam efectuados ou recebidos pagamentos em numerário de montante igual ou superior a 10 mil euros, independentemente de a transacção ser efectuada através de uma operação única, ou de várias operações que aparentam uma ligação entre si.
Aceita-se a necessidade de articulação da nova lei com as disposições da Lei n.º 92/2017, de 22 de Agosto, que prevê os limites à utilização de numerário. No entanto, a inexistência de qualquer patamar é incompreensível perante a realidade dos pequenos comerciantes, onde os pagamentos, habitualmente, não excedem as poucas dezenas de euros, como é o caso dos cafés, restaurantes, mercearias, cabeleireiros, entre outros.
Os recentes limites previstos para a aceitação de pagamentos em numerário poderiam facilmente ter sido adoptados na lei para a definição dos novos limites, a partir dos quais os comerciantes passariam a estar obrigados aos diferentes deveres previstos na lei do combate ao branqueamento e do financiamento do terrorismo1.
Em qualquer caso, a lei expressamente estabelece que as medidas a adoptar devem ser proporcionais aos riscos concretamente identificados, tendo em atenção a natureza, dimensão e complexidade da actividade prosseguida. Assim, desde que devidamente ponderados os riscos, os comerciantes, como quaisquer outras entidades obrigadas, estão apenas obrigados à adopção das medidas que se revelem adequadas e proporcionais aos riscos concretamente identificados no respectivo processo de avaliação.
Neste ponto e relativamente aos comerciantes, terá especial relevância a definição e concretização que venha a ser realizada pela Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE). Compete à ASAE a verificação do cumprimento dos deveres e obrigações previstos na presente lei e nos diplomas regulamentares aplicáveis pelas entidades não financeiras, designadamente as demais pessoas ou entidades que, estando abrangidas pela nova lei, não se encontrem sujeitas à supervisão ou fiscalização de uma outra autoridade2, bem como pelas entidades equiparadas a entidades obrigadas3.
Enquanto autoridade sectorial compete também à ASAE a definição da forma e dos procedimentos necessários ao cumprimento destes deveres. Consta do respectivo sítio na internet que estão ainda em fase de elaboração “os regulamentos sectoriais (a publicar oportunamente), que irão abranger as entidades obrigadas” sob a sua supervisão, pelo que se espera para breve a concretização das novas medidas aplicáveis aos comerciantes.

Dever de controlo e de identificação
Relativamente aos deveres transversais a todas as entidades obrigadas, destaca-se em especial o dever de controlo, que se encontra agora amplamente concretizado na lei e que impõe expressamente aos órgãos de administração das empresas a implementação de procedimentos internos bastante exaustivos que envolvem, entre o mais, a análise do risco da actividade; a criação, a implementação e a fiscalização das políticas de compliance; a realização de testes de eficácia; a monitorização e comunicação de operações suspeitas; o arquivo e a gestão dessa informação; a criação de um canal específico, independente e anónimo, para comunicação de eventuais violações à lei; bem como a designação de um responsável (interno ou externo) pelo controlo do cumprimento do quadro normativo aplicável.
No tocante ao dever de diligência e de identificação, sublinha-se que este passa a incidir não só nas transacções ocasionais, com montante igual ou superior a 15 mil euros, mas também nos casos de transferência de fundos, de montante superior a mil euros, e em todas as operações suspeitas, independentemente do seu valor. No caso dos prestadores de serviços de jogo, estes devem cumprir este dever em todas as transacções de montante igual ou superior a dois mil euros.
Noutra vertente, o conceito de Pessoa Politicamente Exposta (PEP) foi alargado e o dever de identificação do beneficiário efectivo foi reforçado com as obrigações de consulta periódica das informações constantes do registo central do beneficiário efectivo e de comunicação de quaisquer desconformidades ao Instituto de Registos e Notariado.
Uma última nota para referir que o regime sancionatório foi substancialmente agravado. Além da criação de três tipos de crime, o número de contra-ordenações aumentou consideravelmente, a par das coimas aplicáveis, que agora podem ir até aos cinco milhões de euros, no caso de uma pessoa colectiva, e até um milhão de euros, no caso de pessoas singulares.
A nova lei mantém a responsabilização pelas contra-ordenações dos membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das entidades obrigadas e dos trabalhadores ou demais colaboradores permanentes ou ocasionais, quando actuem no exercício das suas funções, ou em nome e no interesse do ente colectivo.
A responsabilidade das pessoas colectivas pode, no entanto, ser excluída, quando se demonstre que o agente actuou contra ordens ou instruções expressas, isto é, quando seja possível demonstrar que o agente actuou à revelia das políticas e procedimentos internos devida e efectivamente implementados na pessoa colectiva. Daqui se extrai a extrema importância que passa a assumir a documentação de todas as decisões adoptadas pelas entidades obrigadas em matéria de prevenção e repressão do branqueamento e financiamento do terrorismo.

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