Entrevista: Eduardo Fitas | Vice-Presidente da Accenture

“O que distingue as empresas vencedoras é o conhecimento que têm dos clientes”

Nestes últimos anos parece que os sectores das tecnologias, de media e de telecomunicações se estão a integrar cada vez mais.

Não é uma tendência exclusiva do sector das telecomunicações, pois esta diluição da fronteira entre eles está também a acontecer noutras indústrias. Há, por exemplo, casos de entrada de operadores de telecomunicações nos serviços financeiros, ou de fabricantes de automóveis no fornecimento de energia.

Mas é um facto que a integração das telecomunicações com os media está a acontecer, e desde há alguns anos. E isso acontece pela valorização dos conteúdos, como factor potencial diferenciador para um operador de telecomunicações, sobretudo a partir do momento em que lançaram e passaram a ser eles os fornecedores de serviços de televisão.

Há conteúdos com maior potencial diferenciador que outros? Os eventos desportivos, por exemplo?

O desporto tem a vantagem de ser um conteúdo que, normalmente, não é visto fora de tempo. Não é algo que se consuma habitualmente com restart ou catchup. É um conteúdo que se vê naquele momento, em directo e potencialmente em exclusivo, e isso dá-lhe uma característica diferente e diferenciadora. Mas não são os únicos a que assistimos. É uma forma diferente de consumir conteúdos. Enquanto, para outro tipo de conteúdos, há várias alternativas – um filme de um determinado género, por exemplo –, o conteúdo desportivo é muito específico, pois não existem dois iguais. Um jogo de futebol é aquele jogo de futebol e não tenho alternativa a ele. Daí o interesse de ter esse tipo de conteúdos em regime de exclusividade no portefólio de um fornecedor de telecomunicações, como forma de ele se diferenciar. Mas qualquer conteúdo que se consiga diferenciar, por não ser facilmente substituído por outro, é naturalmente uma mais-valia na diferenciação de um serviço de televisão por subscrição.

Na sequência desse processo de integração, quem vai ganhar o controlo do negócio? Os grupos de media produtores de conteúdos, ou os grupos de telecomunicações que os distribuem?

É preciso levar em conta que os players que lutam por esse mercado são hoje muito diferentes do que eram há uns anos, quando esse processo de integração se iniciou. Hoje um operador de telecomunicações pode estar aparentemente a ganhar, porque está a adquirir conteúdos para se diferenciar, mas ao mesmo tempo está a concorrer com plataformas over the top, como a Netflix ou a Amazon Prime, que da operação da parte de telecomunicações aproveitam só a infra-estrutura para chegar a casa do cliente.

A concorrência, hoje, não é apenas entre operadores de telecomunicações e pela diferenciação em termos de conteúdos, mas sim entre operadores de telecomunicações e os fornecedores das tais plataformas over the top, ou entre operadores de telecomunicações e fornecedores de equipamento terminal, como é o caso de uma Apple, que aparece com conteúdos associados. O facto ter um iTunes e uma Apple TV também a ajuda a diferenciar-se, quando comparado com outros fornecedores de equipamento terminal.

O que mudou foi o conceito de concorrente, o que, mais uma vez, não é um fenómeno específico das telecomunicações, mas algo que está a acontecer também em todas as indústrias.

Mas enquanto os tais novos players nasceram no mundo digital e são grandes marcas globais, como a Google, Facebook, YouTube ou Netflix, os operadores de telecomunicações continuam sobretudo a ser locais ou regionais…

É um facto que os novos players não têm limitações geográficas, até pelo facto de os seus negócios serem relativamente independentes de temas mais materiais, enquanto os operadores de telecomunicações actuam primordialmente onde têm as suas infra-estruturas.

Mas, e mais uma vez, há diferentes situações. Temos players locais, regionais e globais. A Altice já não é uma marca local, a Vodafone tem presença em vários mercados. Mas existem operadores que estão focalizados só numa região e outros que estão num só país, mas adaptaram os seus modelos operativos a essa realidade e conseguem ser bem sucedidos e até líderes no contexto onde actuam.

Por outro lado, é verdade que ainda não existe hoje um operador de telecomunicações que tenha um modelo digital e uma presença global tão forte que lhe permita nesse contexto equiparar-se a uma Google ou um Facebook.

A maioria dos operadores de telecomunicações e de media ainda utiliza soluções digitais exclusivamente para reduzir os custos, ou optimizar as performances dos seus negócios convencionais. Mas isso são evoluções do negócio tradicional e não uma mudança disruptiva do negócio, que lhes permita desde já assumir uma luta pelo mercado dos consumidores com perfil digital.

Empresas que, a prazo, estarão condenadas a desaparecer ou a ser compradas?

Eu não diria condenadas, mas, ou caminham no sentido de encontrar um novo modelo de negócio, ou não conseguirão concorrer com os novos players por uma fatia cada vez mais significativa do seu mercado. E se for essa a sua estratégia, terão de arranjar outro modelo de negócio. Pode ser só de infra-estrutura, pode ser um modelo de negócios de continuar a explorar segmentos específicos que não valorizam este tipo de experiências do cliente…

Pode ser uma coisa diferente, mas não será a concorrer pela criação de uma experiência mais global para o cliente que se entrega mais serviços e que, na prática, é o que essas entidades, que nascem já com modelos digitais, fazem. Estes players não vendem bem um produto, mas uma experiência ao cliente que aglutina vários produtos, serviços e uma nova forma de relacionamento. A Amazon, uma das pioneiras nesta matéria, capitalizou no facto de ter criado uma boa experiência ao cliente e agora vende de tudo, e já não só conteúdos. Vende produtos frescos e até já entrou no negócio tradicional, com um novo conceito de supermercado físico, alavancada na imagem e na experiência que conseguiu criar no mercado.

Se os operadores de telecomunicações quiserem ser donos da experiência de cliente têm de facto de passar por essas transformações, e alguns já o começaram a fazer, criando extensões das suas organizações com esse objectivo exclusivamente.

Mas existe sempre espaço para os “bons” operadores de telecomunicações, porque possuem características que os diferenciam de outras empresas. Utilizando um exemplo contrário, a própria Google tentou entrar no negócio das infra-estruturas mas voltou atrás, porque os atributos que são necessários para ser um operador de infra-estruturas não são os mesmos que uma empresa puramente digital consegue trazer para o mercado.

Talvez porque há dez anos se ganhava dinheiro nas infra-estruturas e na venda de serviços convencionais e hoje as margens desses negócios estão a desaparecer, não é verdade?

Sim, o negócio das infra-estruturas é muito específico, para além de ser ingrato, porque exige investimento permanente nessas infra-estruturas. O que se pede de uma infra-estrutura é mais capacidade e cada vez mais velocidade. O que um operador precisava há uns anos de largura de banda, para fornecer o seu portefólio de produtos e serviços, não é de todo aceitável nesta altura, com a quantidade de vídeos que andam a circular nas redes sociais, por exemplo. E, por isso, os operadores precisam continuamente de gerir os investimentos nas infra estruturas, sendo que os ciclos de amortização desses investimentos são cada vez mais curtos.

Tornar este negócio sustentável numa perspectiva de commodities, quase de uma utility (em que o operador fornece a infra-estrutura e alguém põe os serviços em cima), não e fácil, nem óbvio. O desafio natural para qualquer operador deve ser o de complementar esse negócio com outros que lhe consigam trazer mais margem, porque vai ser sempre muito difícil conseguir fazer funcionar esse ciclo de rentabilização do investimento.

No fim fica a velha ideia de tirar o máximo valor de cada cliente?

A ideia desses modelos é de facto tirar o máximo valor de cada cliente, fornecendo aquilo que o cliente espera que lhe forneçam. Ou seja, não é criar barreiras a que um cliente saia da carteira de um operador, mas sim não lhe dar razões para que ele saia. É muito difícil, neste contexto, criar barreiras à saída de um cliente. Até num negócio tradicional de telecomunicações se vê isso, porque quando os clientes terminam o período de fidelização fazem um leilão entre os operadores e só depois tomam uma decisão. Os operadores hoje têm de garantir que um cliente não pensa em sair da sua carteira. E não é suficiente dar-lhe razões para ele não sair, é dar-lhe razões para ele ficar. Para um cliente, não basta uma má experiência para trocar de operador, basta não ter tido uma experiência que o impressionou.

Mas a oferta de serviços de media e telecomunicações hoje está muito “commoditizada” e indiferenciada, não está?

Nos media existe uma tentativa de customização ao público-alvo, que faz com que uma mesma notícia seja apresentada de forma diferente, consoante a identidade para a qual se está a tentar comunicar. Para determinado tipo de conteúdos, no limite não haverá diferenciação. Uma notícia na qual se lê apenas o cabeçalho será igual, mas para uma notícia mais elaborada, com mais detalhe e enquadramento, existe uma dimensão de customização relevante.

Existe outra dimensão adicional, que cada vez é mais evidente e que tem a ver com o nível de confiança nas fontes de informação que chegam ao cliente. Existe uma necessidade conceptual de combater notícias falsas, porque hoje é muito fácil torná-las verdadeiras e estas podem ter um impacto relevante. Podem, por exemplo, ajudar a eleger governos com base em percepções e não em realidades.

Quem tem uma boa marca deveria conseguir valorizar o nível de confiança que se pode ter na sua informação. Porque, de resto, é muito fácil aceder a informação que, no limite, até vem dessas entidades, num formato telegráfico e numa plataforma que nem sequer é detida por quem teve o custo de produzir o conteúdo. Se o consumidor quiser ficar por aí, essa informação chega-lhe e ele nunca entrará na plataforma específica do fornecedor dos conteúdos originais.

No caso dos operadores de telecomunicações, o que disse anteriormente é em grande parte verdade. Se olharmos apenas para os atributos técnicos ou para as propostas que eles têm para oferecer, é muito difícil encontrar diferenças. Os preços estão mais ao menos ao mesmo nível e as características técnicas dos produtos e serviços também. A única coisa que sem se tem diferenciado, conceptualmente e mais uma vez, é a experiência que se oferece ao cliente. Se ele não ficar desapontado com o seu operador, terá uma experiência minimamente positiva. Se ficou surpreendido pela positiva (e admito que isso ainda não seja prática corrente), não só não terá razão para mudar, mas terá para ficar. É este último estágio que importa que os operadores consigam desenvolver.

O que distingue, afinal, as empresas que conseguem vencer, e servir de benchmark de boas práticas, das empresas que não o conseguem? O que faz com que uma empresa consiga vingar?

O que as distingue é o conhecimento que têm do cliente. E este conhecimento já não é apenas saber onde é que ele mora, qual a idade, há quanto tempo é cliente, quanto paga por mês. Isso já não é suficiente. É preciso ir mais longe e saber se é uma pessoa que, ao fim-de-semana, faz desporto, se viaja muito e para onde é que viaja, se gosta de desportos motorizados, de culinária, de viajar, que tipo de notícias consome, etc.

É preciso saber isso com base na informação que se consegue obter do cliente. Mais uma vez um operador de telecomunicações, quando junta ao conhecimento básico de um cliente, por exemplo, o tema do consumo de conteúdos, ou a mobilidade associada,consegue informação muito relevante para poder trabalhar os seus clientes nesse contexto.

Se conseguir fazer o perfil específico de cada cliente dentro de casa, para não confundir que é o pai que vê o canal infantil e o filho que vê as notícias, o operador fica com informação supervaliosa para fazer uma avaliação do que é o perfil daquele cliente.

Falamos de Big Data e Analytics, certo?

Exactamente, já não com os atributos de segmentação sociodemográficos tradicionais, mas com atributos muito mais comportamentais ou, de preferência, pessoais. Existem muitas empresas que incluíram toda a informação que têm sobre os seus clientes numa base comum, mas que estão a tirar muito pouco partido dessa informação, porque não têm uma dimensão de analytics e cada vez mais de inteligência artificial para a trabalhar. E a verdade é que se a empresa conseguir descobrir o que o seu cliente faz, conseguirá surpreendê-lo num qualquer momento, fazendo-lhe ofertas que ele não está à espera, ou surpreendendo-o com algum serviço ou na forma como interagiu com ele.

Mesmo que esse cliente não o queira?

A probabilidade de errar, se trabalhar bem essa informação, é menor e pode sempre aprender com o que se passou para não repetir o que funcionou menos bem. E, de qualquer forma, é sempre mais interessante surpreender um cliente com as funcionalidades que coloca à sua disposição, entre o relógio e o dispositivo móvel que utiliza, ou com os conteúdos que tem para disponibilizar, do que fazer chamadas telefónicas às oito da noite para lhe vender um produto de catálogo e indiferenciado.

O Big Data e o Analytics não dão aos gigantes mundiais, como a Google ou o Facebook,  uma enorme vantagem concorrencial?

Empresas desse tipo têm uma quantidade de informação muito relevante sobre qualquer um de nós. E motivaram-se desde o momento zero para a recolher e aproveitá-la. Tudo o que tinha a ver com os mecanismos mais básicos de sugestões com base em gostos aparecia na Amazon nos seus primórdios. Se o cliente comprava dois ou três livros, eles começavam a tentar traçar um perfil e a fazer-lhe sugestões. Essas empresas já nasceram com esse ADN, enquanto os outros estão a aprender. São temas que não são nativos em alguém que já tem negócios há várias décadas e nasceu noutro contexto.

Claramente é para aí que todos terão de caminhar. Nesse aspecto não existem grandes alternativas. Independentemente do portefólio de serviços que queiram colocar no mercado, o facto de conhecerem o cliente de forma mais completa e diferente é o diferenciador.

Se têm dados do cliente, se sabem exactamente do que ele gosta ou necessita, o que as impede de começarem a investir noutras áreas, como a financeira?

Nada os impede e, se pensarmos bem, eles já entraram de forma não consciente no negócio financeiro, há algum tempo, quando faziam subsidiação na venda de equipamento terminal, que podia custar 700 euros e que os operadores entregavam ao cliente logo no momento inicial. Os operadores estavam, de facto, a fazer um financiamento à compra desses equipamentos. Estavam a fazer um financiamento básico, embora nunca o tenham promovido como tal.

E nada os impede de avançarem mais no terreno dos negócios financeiros. A Orange e a Telefónica, por exemplo, já decidiram essa entrada. Não estão a fazer bancos, no sentido convencional, mas estão a entrar no negócio das transacções financeiras, ocupando o espaço dos bancos para os segmentos que valorizam relacionar-se com modelos digitais.

Com a vantagem de que terem a tal base de dados de clientes que conhecem bem? Vai haver uma integração crescente das telecomunicações e a indústria financeira?

Como referi anteriormente, as fronteiras entre negócios são cada vez mais ténues. Entre banca e telecomunicações, entre produtos de retalho e banca, ou produtos de retalho e telecomunicações. Existem cada vez mais sobreposições.

O problema é que não existe uma receita que sirva para toda a gente e em qualquer mercado. Quando uma empresa, como a Telefónica, decide entrar nesse mercado é porque provavelmente encontrou um segmento, que os bancos não estavam a ocupar, o do espaço da experiência digital que os clientes estavam a pedir, e viu isso como uma oportunidade. Por oposição e se todos os bancos tiverem estratégias de digitalização bastante avançadas, provavelmente não se criará espaço para um operador de telecomunicações entrar nesse mercado.

Esta vai ser a guerra a que vamos assistir. Para determinados serviços, o cliente pode estar a recebê-los enquanto cliente de um operador de telecomunicações, de um fornecedor de energia, da entidade que lhe vai levar as compras de supermercado a casa, ou de quem faz a ronda postal na sua zona. Ele pode receber o mesmo tipo de produto através de várias entidades. Vai depender de quem é que lhe garante a melhor experiência.

Se tiver uma muito má experiência com o fornecedor de serviços de telecomunicações se, por exemplo, tiver de começar a controlar a factura para verificar se não está a ser enganado, dificilmente será cliente de serviços financeiros daquele operador. Se não confia numa coisa básica, como uma factura de telecomunicações…

E o mesmo se passará em relação a um fornecedor de serviços de energia: se não confia no que ele está a tentar cobrar, não passará ao próximo estágio da relação. Pelo contrário, se o operador de telecomunicações conseguir criar uma boa experiência, se quando o cliente tem problemas, eles são rapidamente resolvidos, se nunca houve problemas de facturação, se ele propuser ao cliente que faça os seus pagamentos através do telemóvel ou de uma plataforma que ele lhe fornece, ou no limite, que aceite um crédito, ou seja o que for, o cliente não terá razão nenhuma para recusar a proposta. O cliente deixa de pensar se a proposta é de um banco, de um operador de telecomunicações, ou até de uma utility, e passa a pensar que é de quem lhe dá a melhor experiência, e aceitar que quem lhe dá essa experiência melhor pode ficar com o seu serviço.

Os conteúdos são um isco para obter dados sobre os clientes?

Os conteúdos devem valer pelo seu próprio valor e não como um complemento a qualquer outro serviço. De qualquer
forma, os conteúdos dão uma informação sobre o comportamento do cliente muito importante, mas não são a única fonte, porque os dados sobre a mobilidade (onde é que o cliente anda? Onde pára? Onde entra?…) também são muito relevantes. Se cruzarmos todos estes dados podemos saber se, numa determinada localização geográfica, o cliente entrou, ou não, numa loja do tipo A, B ou C, se está num restaurante, quanto tempo ficou, etc.

Se pela georreferenciação do cliente já consigo perceber se ele estará no restaurante, num stand de automóveis ou a assistir a um evento desportivo. Se em cima disso conseguir fazer cruzamento de dados sobre o seu comportamento e as suas transacções financeiras, ficarei a saber não apenas onde é que ele está, mas, no limite, também o que adquiriu e por que valor.

Existem diferentes layers sobre o perfil do cliente e os seus gostos, que são cedidos de forma consciente ou inconsciente. Existem informações que o cliente está disposto a ceder e que ele já cede que ficarão registadas em algum lugar, mas existem outras que ele nem sequer pensa muito que possam ser registadas.

Há clientes que criam perfis falsos ou dão informações falsas. Como lidar com isso?

À medida que os sistemas de recolha e tratamento de dados vão aprendendo e evoluindo, a proporção de erro na análise do perfil do cliente tenderá a ser menor. Essa análise não é baseada num modelo estático, mas sim, e cada vez mais, em modelos interactivos e automaticamente enriquecidos pelos sistemas de inteligência artificial. Erros existirão sempre, mas um bom modelo analítico fornece informação com uma margem de erro quase desprezível.

Entrevista publicada na edição n.º 5 da Revista Risco de Junho a Agosto de 2017

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