Como as redes sociais nos levaram da Praça Tahrir a Donald Trump

Para compreender como as tecnologias digitais passaram de instrumentos para espalhar a democracia para armas que a atacam, temos de olhar para lá das tecnologias em si.

Por Zeynep Tufekci, colaborador do MIT Technology Review

À medida que a que a Primavera Árabe atravessava o Médio Oriente em 2011 e os líderes autoritários caíam uns a seguir aos outros, viajei pela região para tentar compreender o papel da tecnologia. Falei com manifestantes em cafés na zona da Praça Tahrir, no Cairo, e muitos asseguraram que desde que tivessem internet e smartphones, acabariam por prevalecer. Na Tunísia, activistas arrojados mostraram-me como usaram ferramentas de fontes abertas para monitorizar as viagens a Paris para ir às compras que a mulher do presidente autocrático do país fez com aviões do Estado. Até os sírios que conheci em Beirute se mantinham optimistas; o seu país ainda não tinha mergulhado numa guerra infernal. Os jovens tinham energia, inteligência, sentido de humor e smartphones, e esperavam que o destino da região virasse a favor das suas exigências democráticas.

Nos EUA, numa conferência de 2012, usei a imagem de um vídeo viral gravado durante os protestos de rua iranianos em 2009 para mostrar como as novas tecnologias faziam com que fosse mais difícil os habituais ocultadores de informação – como os governos e os media – controlarem ou abafarem opiniões dissidentes. Era uma imagem difícil de ver: uma jovem a sangrar até à morte no passeio. Mas era aí que estava o seu poder. Apenas uma década antes, nunca teria sido gravado e muito menos se tornaria viral. Mesmo que um fotógrafo apanhasse o que estava a acontecer, a maioria das organizações jornalísticas não mostraria uma imagem tão gráfica. Nessa conferência, falei sobre o papel que as redes sociais têm a destruir aquilo a que os cientistas sociais chamam de “ignorância pluralista” – a crença de que ninguém está sozinho nas suas opiniões quando na verdade todos foram silenciados colectivamente. É por isso, disse, que as redes sociais deram origem a tanta rebelião: pessoas que anteriormente estavam isoladas na dissidência descobriram e foram buscar força umas às outras. Twitter, a empresa, re-tweetou a minha conferência num pedido para que os candidatos a empregos se “juntassem ao rebanho”. A noção implícita era que o Twitter era uma força do bem no mundo, estando ao lado das pessoas e das suas revoluções. Os novos guardiões das informações, que se viam como “plataformas” neutras, gostaram do seu potencial positivo.

Partilhei esse optimismo. Eu próprio venho do Médio Oriente e vi dissidentes a usarem as ferramentas digitais para desafiarem governo após governo.

Mas uma mudança estava já no ar. Durante a revolução de Tahrir, o autocrata do Egipto, Hosni Mubarak, cortou desastradamente a internet e os serviços móveis. A jogada teve um efeito negativo: restringiu o fluxo de informações que saíam da Praça Tahrir, mas chamou a atenção internacional para o Egipto. Mubarak não compreendeu que, em pleno século XXI, é o fluxo de atenção, e não de informação que é importante. Além disso, os amigos dos revolucionários do Cairo acorreram prontamente com telefones por satélite, permitindo-lhes continuar a dar entrevistas e enviar imagens para organizações jornalísticas mundiais.

Ao fim de poucas semanas, Mubarak foi forçado a sair, substituído por um conselho militar. O que se fez então foi um prenúncio do que estava para vir. O Conselho Supremo das Forças Armadas do Egipto abriu rapidamente uma página de Facebook e tornou-a fonte exclusiva dos seus comunicados. Tinham aprendido com os erros de Mubarak: jogariam o mesmo jogo dos dissidentes.

Ao fim de uns anos, a esfera online do Egipto mudaria drasticamente. «Tínhamos mais influência quando éramos só nós no Twitter», disse-me um proeminente activista sobre as redes sociais. «Agora está cheio de discussões entre dissidentes que estão a ser assediados por apoiantes do governo.» Em 2013, numa série de protestos contra um governo civil novato, mas fracturante, os militares mantiveram o controlo.

O poder aprende sempre, e as ferramentas poderosas caem sempre nas suas mãos. É uma lição difícil, mas sólida. É vital para compreender como, em sete anos, as tecnologias digitais passaram de ferramentas de liberdade e mudança para serem culpadas de algumas perturbações nas democracias ocidentais – por permitirem o crescimento da polarização, aumentarem o autoritarismo e servirem de ferramenta para a Rússia e outros influenciarem eleições nacionais.

A AUDÁCIA DA ESPERANÇA

A eleição de Barack Obama em 2008 como o primeiro presidente afro-americano nos EUA antecedeu a narrativa da Primavera Árabe de a tecnologia dar poder ao menos favorito. Obama era um candidato pouco provável que emergiu triunfante, batendo primeiro Hillary Clinton nas primárias do partido Democrata e depois o seu oponente republicano na eleição geral. As suas vitórias de 2008 e 2012 deram origem a uma enchente de artigos sobre o seu uso inteligente de tecnologia, redes sociais, perfis de eleitores e micro-segmentação. Após a sua segunda vitória, a “MIT Technology Review” colocou o Bono na sua capa, com o título “O Big Data irá Salvar a Política” e uma citação: «Telemóvel, internet e propagação de informações – uma combinação fatal para os ditadores.»

Contudo, eu e muitos outros que observaram regimes autoritários sentíamos já alguma apreensão. Uma questão importante para mim era como a micro-segmentação, principalmente no Facebook, podia ser usada para criar caos na esfera pública. É verdade que as redes sociais fizeram os dissidentes saber que não estavam sozinhos, mas a micro-segmentação online podia também criar um mundo em que não se saberia se as mensagens que os outros recebem ou a maneira como as recebem poderiam ser personalizadas consoante os nossos desejos ou vulnerabilidades.

As plataformas digitais permitiram às comunidades reunir e formar-se de novas formas, mas também dispersaram as comunidades existentes, as que viam os mesmos noticiários e liam os mesmos jornais. Até viver na mesma rua significa menos quando a informação é disseminada através de algoritmos criados para maximizar receitas mantendo as pessoas coladas ao ecrã. Foi a mudança de uma política pública e colectiva para uma política mais espalhada e privada, com actores políticos a recolherem mais e mais dados pessoais para descobrirem como carregar nos botões certos, pessoa a pessoa e longe da vista.

Tudo isto, temia, podia ser a fórmula para desinformação e polarização. Pouco depois da eleição de 2012, escrevi um artigo para o “New York Times” dando voz a estas preocupações. Não querendo parecer um velho rabugento, subvalorizei os meus medos. Limitei-me a defender a transparência e responsabilização de anúncios e conteúdos políticos nas redes sociais, semelhante aos sistemas existentes em meios regulados como a televisão e a rádio.

A reacção negativa não se fez esperar. Ethan Roeder, director de dados da campanha de Obama para 2012, escreveu um artigo intitulado “Não Sou o Big Brother”, chamando aos meus medos “tretas”. Quase todos os cientistas de dados e democratas com quem falei ficaram terrivelmente irritados com a minha ideia de que a tecnologia podia ter um lado negativo. Os leitores que comentaram o meu artigo pensaram que eu tinha simplesmente mau perder. Aqui estava uma tecnologia que permitira aos democratas serem melhores nas eleições. Como é que isto podia ser um problema?

A ILUSÃO DA IMUNIDADE

Os revolucionários de Tahrir e os apoiantes do Partido Democrático dos EUA não estavam sozinhos ao pensarem que teriam sempre a vantagem.

A Agência Nacional de Segurança dos EUA tinha um arsenal de ferramentas de pirataria informática com base nas vulnerabilidades nas tecnologias digitais – “bugs”, portas secretas, explorações, atalhos na (muito avançada) matemática e um enorme poderio tecnológico. Estas ferramentas receberam o nome “ninguém além de nós”, o que significa que mais ninguém as poderia explorar, portanto não havia necessidade de corrigir essas vulnerabilidades ou tornar a segurança tecnológica mais resistente no geral. A NSA parecia acreditar que uma segurança online fraca prejudicava muito mais os seus adversários do que prejudicaria a NSA.

A confiança parecia justificada para muitos. Afinal de contas, a internet é maioritariamente uma criação norte-americana; as suas maiores empresas foram fundadas nos EUA. Cientistas tecnológicos de todo o mundo ainda rumam para o país, esperando trabalhar em Silicon Valley. E a NSA tem um orçamento gigante e, alegadamente, milhares dos melhores piratas informáticos e matemáticos do mundo.

Como tudo é confidencial, não sabemos toda a história, mas entre 2012 e 2016 não houve nenhum esforço visível para “fortalecer” significativamente a infra-estrutura digital dos EUA. Nem soaram nenhuns alarmes sobre o que significaria se uma tecnologia passasse a fronteira.

Não parece ter havido uma grande noção dentro das instituições norte-americanas – nas suas agências de informação, na sua burocracia, na sua máquina eleitoral – de que a verdadeira segurança digital exige melhores infra-estruturas técnicas e uma noção do público mais adequada sobre os riscos de pirataria informática, interferência, desinformação e mais.

O PODER DAS PLATAFORMAS

Nesse contexto, as poucas plataformas de redes sociais norte-americanas parecem ter sido deixadas à vontade para lidar à sua vontade com quaisquer problemas que pudessem emergir. Como já era esperado, deram prioridade ao valor das suas acções e à rentabilidade. Ao longo dos anos da administração Obama, estas plataformas cresceram estrondosamente e praticamente sem regras. Passaram esse tempo a solidificar as suas competências técnicas para analisarem os seus utilizadores, com o intuito de tornar a publicidade das plataformas ainda mais eficaz. Em menos de uma década, a Google e a Facebook tornaram-se um duopólio virtual no mercado da publicidade digital.

O Facebook também engoliu possíveis concorrentes como o WhatsApp e o Instagram sem que soassem quaisquer alarmes. Tudo isso lhes deu mais dados, ajudando a melhorar os seus algoritmos para manter os utilizadores na plataforma e bombardeá-los com publicidade. Basta carregar uma lista de alvos previamente identificados e o motor de IA do Facebook ajuda a encontrar públicos muito maiores e “semelhantes” que podem estar receptivos a uma determinada mensagem. Após 2016, o dano grave que esta característica podia causar tornou-se óbvio.

Entretanto, a Google – cujas pesquisas podem criar ou destruir uma empresa, um serviço ou um político, e cujo serviço de email tinha mil milhões de utilizadores em 2016 – também operava a plataforma de vídeo YouTube, cada vez mais um canal de informação e propaganda em todo o mundo. Uma investigação do “Wall Street Journal” no início deste ano descobriu que o algoritmo de recomendações do YouTube tendia a levar as pessoas para conteúdos extremistas ao sugerir versões mais radicais daquilo que estivessem a ver – uma boa forma de chamar a atenção. Isto foi lucrativo para o YouTube, mas também um trunfo para os fãs das teorias da conspiração, já que as pessoas sentem-se atraídas por declarações novas e chocantes. A teoria “Três graus de Alex Jones” tornou-se uma piada: não importava onde uma pessoa começava no YouTube, ela nunca estava a mais de três recomendações de um vídeo de um fã de conspirações da extrema-direita que popularizou a ideia de que o tiroteio na escola Sandy Hook, em 2012, nunca aconteceu e que os pais em pânico eram meros actores numa conspiração contra proprietários de armas.

Embora mais pequeno que o Facebook e o Google, o Twitter teve um papel externo graças à sua popularidade entre jornalistas e pessoas ligadas à política. A sua filosofia aberta e abordagem descontraída aos pseudónimos agrada a rebeldes de todo o mundo, mas também apela a trolls anónimos que vociferam abusos contra mulheres, dissidentes e minorias. Só no início deste ano resolveu punir o uso de contas bot que os trolls usavam para automatizar e ampliar tweets abusivos.

Donald Trump é excelente a usar o Twitter para chamar a atenção. Mas a sua campanha também foi excelente a usar o Facebook da forma como foi feito para ser utilizado por anunciantes, testando mensagens em centenas de milhares de pessoas e utilizando as que funcionavam melhor. O Facebook colocou alguns dos seus colaboradores na campanha de Trump para o ajudar a usar a plataforma de forma eficaz, mas também ficaram impressionados pelo desempenho de Trump. Em memorandos internos posteriores, o Facebook alegadamente considerou a campanha de Trump “inovadora”, com a qual poderiam aprender.

As ferramentas digitais estiveram presentes em agitações políticas em todo o mundo nos últimos anos, incluindo outras que deixaram as elites estupefactas: a decisão da Grã-Bretanha de deixar a União Europeia e a ascensão da extrema-direita na Alemanha, Hungria, Suécia, Polónia, França e noutros países. O Facebook ajudou Rodrigo Duterte, o homem forte das Filipinas, na sua estratégia eleitoral e foi até citado num relatório da ONU como tendo contribuído para uma campanha de limpeza étnica contra a minoria Rohingya em Myanmar. Contudo, as redes sociais não são a única tecnologia aparentemente democratizante que os extremistas e os autoritários aproveitaram. Os operacionais russos que tentaram piratear as comunicações de dirigentes do Partido Democrata usaram o bitcoin – uma criptodivisa feita para dar às pessoas anonimato e liberdade das instituições financeiras – para comprarem ferramentas como redes privadas virtuais, que podem ajudar a cobrir os traços online de um indivíduo. Depois usaram estas ferramentas para criar organizações jornalistas locais falsas em redes sociais pelos EUA.

Aí começaram a divulgar materiais feitos para criar polarização. Os trolls russos fizeram-se passar por muçulmanos norte-americanos com inclinações terroristas e por supremacistas brancos que se opunham à imigração. Fizeram-se passar por activistas do movimento Black Lives Matter a expor a brutalidade policial e por pessoas que queriam adquirir armas para disparar contra agentes da polícia. Ao fazê-lo, alimentaram as chamas da divisão e ofereceram às pessoas de cada grupo provas de que os seus oponentes imaginários eram tão horríveis quanto suspeitavam. Estes trolls também assediaram online, incessantemente, jornalistas e apoiantes de Clinton, resultando numa enxurrada de notícias sobre o tópico e alimentando uma narrativa de polarização entre democratas.

AS LIÇÕES DE UMA ERA

Como aconteceu tudo isto? Como é que as tecnologias digitais passaram de dar poder aos cidadãos e destituir ditadores para serem usadas como ferramentas de opressão e discórdia? Existem várias razões.

Primeiro, o enfraquecimento dos antigos guardiões da informação, enquanto fez crescer a visibilidade dos mais desfavorecidos, fez ao mesmo tempo com que os mais desfavorecidos ficassem sem poder. Os dissidentes conseguem contornar a censura com mais facilidade, mas a esfera pública que agora alcançam é demasiado ruidosa e confusa, fazendo com que não tenham impacto. Aqueles que esperam criar uma mudança social positiva têm de convencer as pessoas de que algo no mundo precisa de mudar e de que existe uma forma construtiva e razoável de o fazer. Os autoritários e os extremistas, por outro lado, têm muitas vezes de enfraquecer a confiança em geral para que todos estejam demasiado espalhados ou paralisados para agirem. Os antigos guardiões bloqueavam alguma verdade e dissidência, mas também bloqueavam muitas formas de desinformação.

Segundo, os novos guardiões algorítmicos não são apenas condutores neutros para a verdade e a falsidade. Fazem dinheiro mantendo as pessoas nos seus sites e aplicações; o que alinha os seus incentivos com os de indivíduos que querem espalhar revolta, espalhar desinformação e apelar aos preconceitos e preferências das pessoas. Os antigos guardiões falharam de muitas formas, e não há dúvida de que o seu fracasso ajudou a alimentar a desconfiança e a dúvida; mas os novos guardiões tiveram sucesso ao alimentarem a desconfiança e a dúvida, desde que as pessoas continuem a clicar.

Terceiro, a perda de guardiões foi severa no jornalismo local. Enquanto alguns grandes nomes dos media conseguiram sobreviver à convulsão causada pela internet, esta destruiu quase completamente os jornais locais e prejudicou esse sector em muitos outros países. O que abriu a porta para a desinformação. Também significou menos investigação e responsabilização para aqueles que exercem o poder, principalmente a nível local. Os operacionais russos que criaram meios de comunicação locais falsos nos EUA compreenderam a sede por notícias locais ou simplesmente tiveram sorte na estratégia. Sem verificações e comprovações locais, a corrupção local cresce e alimenta uma onda de corrupção global que tem grande influência em muitas das crises políticas actuais.

A quarta lição está relacionada com a muito falada questão das câmaras de eco – a ideia de que online encontramos apenas visões semelhantes à nossa. Isto não é totalmente verdade. Enquanto os algoritmos muitas vezes oferecem às pessoas aquilo que já querem ouvir, pesquisas mostram que provavelmente encontramos uma variedade mais extensa de opiniões online do que offline, ou de que fazíamos antes do advento das ferramentas digitais.

Em vez disso, o problema é que quando encontramos ideias opostas na era e contexto das redes sociais, não é como lê-las num jornal enquanto estamos sozinhos. É como ouvi-las da equipa contrária enquanto estamos sentados com os fãs da nossa esquipa num estádio de futebol. Online, estamos ligados às nossas comunidades e procuramos aprovação dos pares que pensam como nós. Ligamo-nos à nossa equipa ao gritamos aos fãs da outra equipa. Em termos sociológicos, fortalecemos a nossa sensação de estarmos no “grupo interno” ao aumentarmos a nossa distância e a tensão do “grupo externo” – nós contra eles. O nosso universo cognitivo não é uma câmara de eco, mas o nosso universo social é. É por isso que os vários projectos para se verificarem alegações nas notícias, embora de valor, não convencem as pessoas. Pertencer a algo é mais forte do que factos.

Uma dinâmica semelhante teve o seu papel no rescaldo da Primavera Árabe. Os revolucionários acabaram por se envolverem em questiúnculas nas redes sociais à medida que se dividiam em grupos mais pequenos, enquanto os autoritários mobilizaram os seus próprios apoiantes para atacar os dissidentes, chamando-lhes traidores ou estrangeiros. Esse trolling e assédio “patriota” é mais comum, e uma ameaça maior aos dissidentes, do que os ataques organizados por governos.

Foi assim que os operacionais russos alimentaram a polarização nos EUA, fazendo-se passar por imigrantes e supremacistas brancos, apoiantes de Trump zangados e “amigos do Bernie”. O conteúdo da discussão não importava; queriam paralisar e polarizar, não convencer. Sem os antigos guardiões, as suas mensagens chegavam a toda a gente, e com analistas digitais à disposição, podiam aperfeiçoar essas mensagens como qualquer anunciante ou político.

Quinto, e último, a Rússia explorou a fraca segurança digital dos EUA – a sua mentalidade “ninguém além de nós” – para subverter o debate público na eleição de 2016. A pirataria e a divulgação de emails do Comité Nacional Democrata e da conta de John Podesta, gestor de campanha de Hillary Clinton, levou a uma campanha de censura, inundando os canais de comunicação convencionais com conteúdos maioritariamente irrelevantes. Enquanto o escândalo dos emails de Clinton dominava as notícias, as campanhas de Trump e Clinton não recebiam o tipo de escrutínio jornalístico que mereciam.

Isto mostra, no fundo, que o “ninguém além de nós” dependeu de uma interpretação errada do que significa segurança digital. Os EUA podem continuar a ter capacidades ofensivas na cibersegurança. Com a sua sede de cliques e visualizações, e a incapacidade de compreender como funciona a nova esfera digital, afastaram-se da sua principal função e seguiram para um pântano confuso.

O CAMINHO EM FRENTE

O que há a fazer? Não há respostas fáceis. Mais importante, não há respostas puramente digitais.

Existem certamente medidas a serem tomadas no reino digital. O fraco ambiente antimonopólio que permitiu que algumas empresas gigantes se tornassem quase monopólios deve ser invertido. Contudo, acabar com estas gigantes sem mudar as regras do jogo pode simplesmente produzir muitas empresas mais pequenas que usam as mesmas técnicas predatórias de controlo de dados, micro-segmentação e arquitectura de escolha.

O controlo digital omnipresente deve simplesmente acabar na sua forma actual. Não há qualquer razão aparentemente justificável para se permitir que tantas empresas acumulem tantos dados sobre tantas pessoas.

Convidar os utilizadores a “clique aqui para concordar” em termos de utilização vagos e difusos não significa um “consentimento informado”. Se, há duas ou três décadas, antes de andarmos sonâmbulos, uma empresa sugerisse tanta recolha descuidada de dados como modelo de negócio, teríamos ficado horrorizados.

Existem muitas formas de operar serviços digitais sem desviar tantos dados pessoais. Os anunciantes faziam-no antes, podem fazê-lo de novo, e é provavelmente melhor que os políticos não o façam com facilidade. A publicidade pode estar ligada a conteúdos e não direccionada a pessoas: não há problema em publicitar material de mergulho perto de mim se eu estiver inscrito num fórum de mergulho, em vez de se usar o meu comportamento noutros sites para descobrir se sou mergulhador e depois seguir-me para todo o lado que vou – online e offline.

Mas não chegámos a este ponto apenas por causa das tecnologias digitais. O governo russo pode ter usado plataformas online para influenciar as eleições norte-americanas remotamente, mas a Rússia não criou as condições de desconfiança social, instituições fracas e elites distanciadas que tornam os EUA vulneráveis a este tipo de influência.

A Rússia não fez os EUA (e os seus aliados) começarem uma guerra no Médio Oriente e depois lidarem mal com a situação, cujos efeitos – entre eles a actual crise de refugiados – ainda criam o caos, e para a qual ainda ninguém foi considerado responsável.

A Rússia não criou o colapso financeiro de 2008: isso aconteceu graças a práticas corruptas que muito enriqueceram as instituições financeiras, após as quais todos os culpados saíram incólumes, alguns mais ricos, enquanto milhões de norte-americanos perderam os seus empregos e não conseguiram substituí-los por outros igualmente favoráveis.

Se a ligação digital foi a faísca, esta ganhou força porque havia lenha por todo o lado. O caminho em frente não é cultivar a nostalgia pelos guardiões da velha guarda ou pelo idealismo da Primavera Árabe.

É descobrir como as nossas instituições, os nossos guardiões sociais devem funcionar no século XXI – não só nas tecnologias digitais, mas na política e na economia em geral. Esta responsabilidade não é da Rússia, e não é só do Facebook ou do Google. É nossa.

Este artigo foi publicado na edição de Novembro de 2018 da Executive Digest.

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